HISTORIA NO MEMORIA - EXILADU, AZILU, HAKSOIT LUTU, LOMPAT PAGAR, REFUJIADU, EMIGRASAUN
Nicolau Lobato Nicolau Lobato Komandante Xanana Nino Konis Santana Taur Matan Ruak
Hanoin Hikas | TEMPO NO MEMORIA | Ita Nia Historia
 
In Memoria
Saudozu Companheiro

Helder Manuel Pires de Piedade

quarta-feira, 12 de março de 2014

Luís Cardoso: Crónica de uma Travessia

Foto: revistaaguavai.blogspot.com
Fora a décima primeira vez que se perdera. Quando as autoridades o trouxeram de volta, recomendaram que a polícia não tinha por missão regesgatar quem se ausentara no tempo. Trazia a roupa suada e molhada, colada à pele como a de um náufrago. Os cabelos crescidos e soltos, a barba branca e densa como de um bé-nain ou o espírito das águas (...)

- Crónica de uma Travessia



Dados Biográficos

Luís Cardoso é considerado o primeiro romancista timorense. Nasceu em Cailaco, vila no interior de Timor.

Inicio os estudos em colégios missionários e num seminário, tendo interrompido os estudos, que prosseguiu em Portugal, quando se deu a revolução do 25 de Abril de 1974. Exílado em Portugal, licenciou-se em sivicultura no Instituto Superior de Agronomia de Lisboa. Entre 1992 e 1996 assumiu o cargo de representante em Portugal do Conselho Nacional da Resistência Maubere, entre outras actividades ligadas á divulgação da cultura maubere e á comunidade timorense em Portugal. Hoje, "terminou o tempo do encantamento", afirma-se militante "da causa que mantém todo o povo em luta".

Obra

Crónica de uma Travessia (1997)

Entrevistas

Do encantamento à ira

DISTÂNCIA da terra avivou-lhe a memória de um tempo em que, na companhia do pai enfermeiro, peregrinava por terras do Timor português. 0 exílio forçado fê-lo desembarcar na praia lusitana que aprendera a amar nos bancos da escola missionaria. Luís Cardoso - primeiro romancista timorense teve a ousadia de mostrar o roteiro da travessia dolorosa de um povo, que viu o imaginário desmoronar-se perante a ofensa bruta das botas de Suharto.

Antigo seminarista, formou-se em Silvicultura no exílio em Lisboa. Entre 1992 e 1996 assumiu 0 cargo de representante em Portugal do Conselho Nacional da Resistência Maubere. Hoje, «terminado 0 tempo do encantamento», afirma-se militante «da causa que mantém todo um povo em luta»

EXPRESSO - Este livro é simultaneamente autobiografia e a crónica de um país...

LUÍS CARDOSO - É o meu retrato e o de todos Os timorenses que atravessaram um tempo difícil, desde os tempos do encantamento até aos dias da ira. Escrevi-o tentando ser o mais íntimo possível, contando a história de Timor através de uma história pessoal, uma vivência igual a tantas outras que muitos timorenses poderiam contar.

EXP. - Qual foi o tempo de encantamento?

L.C. - Em Timor, no tempo da administração portuguesa, os manuais escolares ensinavam-nos os nomes de rios, das serras, da linhas de caminho-de-ferro, das cidades de Portugal. Havia um percurso de imaginário de um pais distante, que não conhecíamos. Havia um encantamento provocado pelo que nos ensinavam na escola, onde existiam dois mapas, o da mãe-pátria e o da Terra Santa. Entre os dois havia uma coincidência: o poder colonial transmitia uma imagem mítica de Portugal que era coincidente com a imagem da religião originária da Terra Santa. A mensagem transmitida pelos missionários decalcava as razoes da pátria com as da religião. Era o tempo do encantamento.

EXP. - Timor, onde ficava no melo dessa historia?

L.C. - Ficava sobretudo na parte escura desta luz. Ainda estávamos na escuridão, tínhamos de sair da escuridão para conhecer a luz que nos era oferecida, tanto através dos manuais escolares como através da própria religião. Havia um encantamento, que girava na nossa cabeça. A maioria não sabia o que era Portugal, era uma coisa tão distante. A única possibilidade de virmos a conhecer este paraíso era caso um dia conseguíssemos um lugar de funcionário da administração, Os quais podiam vir ca nas viagens de licença graciosa...

EXP. – E os dias da Ira?

L.C. - Começam quando se dá a fractura entre os lideres dos diversos grupos timorenses. E toda a gente sabia perfeitamente que uma situação de tensão interna iria provocar uma entrada da Indonésia. Os dias da ira perpetuaram-se no exílio. Por incrível que pareça, Timor sempre foi ela própria a terra dos exilados portugueses, dos anarquistas de quem o regime se queria livrar. 0 que acontece agora, é que somos nós, timorenses, que tomamos Portugal como a nossa terra de exílio. Há, neste ponto de vista, uma rota ao contrário: antes era Timor que recebia os portugueses que o regime exilava. Hoje, são os portugueses a receber os exilados timorenses.

EXP. - Mas não é somente a história de Timor que perpassa no texto...

L.C. - E também a minha a historia concreta, envolvida pela própria história timorense. Pretendi transmitir, através do tempo do encantamento e dos dias da ira, essa travessia da história de Timor.

Quis dar uma ideia do que foi Timor, através dos meus olhos, o Timor que eu conheci. E também o Timor dos bons malandros, entre aspas.

EXP. - Quem eram Os «bons malandros»?

L.C. - «Bons malandros» éramos nós, que andávamos no liceu, na escola técnica, que seguiríamos o mesmo destino dos funcionários da administração colonial. Mas nós, os «bons malandros», ao mesmo tempo que estávamos a ser envolvidos pela administração portuguesa, tínhamos também uma posição critica em relação ao regime, assumindo uma atitude oportunista: aproveitávamos as possibilidades que o regime providenciava para subirmos na escala social. Mas fomos nós quem, após o 25 de Abril, começou a colocar problemas políticos a metrópole. Fomos nós, os «bons malandros» e sobretudo quadros da administração colonial portuguesa, que formámos a Fretilin, a UDT e APODETI.

EXP. - Quem coloca problemas políticos a Lisboa são os beneficiários desse regime?

L.C. - Claro. Todos Os quadros da Fretilin da UDT e da APODETI eram beneficiários. São os «bons malandros» que não conseguiram concertação de modo a encontrar uma solução. Penso que, na altura se a igreja católica timorense tivesse o posicionamento que mantém hoje, de unificação, não se teria chegado aos tempos da ira.

EXP. - Porque?

L.C. - Porque a elite dos «bons malandros» foi toda formada nos seminários. Eram filhos de professores-catequistas. Foi 0 caso de Nicolau Lobato (primeiro comandante da guerrilha), Abílio Araújo, Lopes da Cruz (actual embaixador de Timor, nomeado por Jacarta), Domingos Oliveira (primeiro líder da Fretilin), Osório Soares (actual governador de Timor) e o próprio Xanana Gusmão.

EXP. - Se a Igreja Católica tivesse assumido o papel congregador que hoje D. Ximenes Belo desempenha, os dias da ira não teriam chegado?

L.C. - Acredito nisso. Possivelmente a Indonésia não teria invadido Timor.

EXP. - 0 que e' que falhou?

L. C. - A igreja católica, na altura, era subretudo uma igreja de ,missionários, o que significava o caminhar conjunto com o regime colonial. A Igreja timorense de hoje foi formada na luta constante. É nacionalista, apesar de não se assumir como poder político. A Igreja manifesta-se na defesa dos Direitos Humanos, na defesa dos interesses do povo timorense, se isto coincide neste momento com a questão política, muito bem. É uma Igreja que tenta fortificar-se para impedir a islamização do povo timorense, que é um objectivo político da ocupação da Indonésia. E o protagonista é toda a estrutura da Igreja Católica, não é apenas D. Ximenes Belo.

EXP. - Toda a narrativa do livro é feito na primeira pessoa...

L.C. - E uma forma de ser mais honesto com o leitor. Podia ter colocado outro narrador, mas quis ser eu próprio a contar um tempo que observei com os meus próprios olhos. Aliás, a literatura timorense baseia-se na oralidade, na figura do contador de histórias, que é uma pessoa que vem das montanhas e que, alem de contar a sua própria vida, o seu quotidiano e os seus mitos, vai criando outras estórias. Quis precisamente pegar neste jogo.

EXP. - Mas, curiosamente, é uma narrativa tutelada pela figura do pai.

L.C. - Os nossos pais tendem a ver nos filhos a sua própria continuidade. Viajam através dos filhos. Neste sentido o livro é uma dupla viagem: a viagem da pátria a Timor e a viagem de pai para filho. E o que acontece as vezes é que ele projecta os seus sonhos no filho, para que sejam por ele concretizados Acredito que os sonhos de meu pai fossem no sentido de eu ascender a tal carreira dos «bons malandros». Ele viajaria através de mim; ele nunca pensou que um dia viesse a Portugal. Quando eu era miúdo era ele que me inculcava a noção de pátria. 0 meu pai, que era enfermeiro, cumpria a sua tarefa de funcionário publico, mas ao mesmo tempo misturava as coisas: quando as penicilinas não davam efeito ele servia-se dos saberes ancestrais, dos remédios timorenses, dos produtos naturais. Percorri todo o Timor com o meu pai nesta peregrinação no tempo da presença portuguesa.

EXP. - Onde mora neste livro a actual luta política de Timor?

L.C. - Mora sobretudo no ambiente que se traça ao longo do texto. Não é um livro de resistência; pretendi destrinçar: há um facto político e a liderança da resistência traça a sua luta pelos seus próprios meios. Eu por mim tentei, tão-só, descrever o percursor de um timorense envolvido também nessa luta. Mas não é um livro apolítico. A resistência do povo ao invasor tem aqui lugar: o exílio forçado, a imagem dos «bons malandros», alguns dos quais são os actuais lideres da resistência.

Arquivos de Literatura (Expresso)
21 de Março de 1998

Outros Sites

www.memoria-africa.up.pt
www.instituto-camoes.pt/arqvliteratura/livlcardoso.htm
Fonte: http://www.sudoestealentejano.com/literatura/paginas/luis_cardoso.htm 

Sem comentários:

Hakerek ba Ami konta
Imi nia istoria, Ita nia istoria, Timor nia istoria.